1. Apresentação do Tema A coisa julgada constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito, representando a consolidação da autoridade das decisões judiciais após o exaurimento das vias recursais. Trata-se de garantia fundamental que assegura a estabilidade das relações jurídicas, a previsibilidade das decisões e a confiança dos jurisdicionados no sistema judicial. Ao conferir definitividade às sentenças e acórdãos transitados em julgado, a coisa julgada desempenha papel central na realização da segurança jurídica, um dos objetivos fundamentais da jurisdição. Por outra via, essa estabilidade não é absoluta. A própria constituição da república admite hipóteses excepcionais de desconstituição da coisa julgada, entre as quais se destaca a ação rescisória, prevista nos artigos 966 a 975 do Código de Processo Civil. Trata-se de instrumento processual de manejo restrito, sujeito a rigorosos requisitos legais e prazos preclusivos, cuja função é permitir, em situações excepcionais, o reexame de decisões judiciais transitadas em julgado que apresentem vícios graves, como violação manifesta à norma jurídica ou erro de fato. No contexto atual, um dos debates mais relevantes diz respeito à possibilidade de se rescindir decisões amparadas pela coisa julgada, mas que tenham violado preceitos constitucionais — especialmente à luz da jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a inconstitucionalidade de certas interpretações judiciais estabilizadas por coisa julgada. A tensão entre a força da coisa julgada e a supremacia da constituição da república levanta importantes questões sobre a legitimidade e os limites do controle de constitucionalidade após o trânsito em julgado, demandando análise detida sobre os fundamentos da ação rescisória como instrumento de recomposição da ordem jurídica. 2. Coisa Julgada Formal e Material: Definições, Efeitos e Importância A coisa julgada é uma das manifestações mais relevantes do princípio da segurança jurídica no processo civil. Trata-se da qualidade conferida à decisão judicial que não mais está sujeita a recurso ordinário ou extraordinário com efeito suspensivo, consolidando seus efeitos no plano jurídico. A doutrina distingue entre coisa julgada formal e coisa julgada material, cujas definições e consequências possuem implicações distintas. A coisa julgada formal diz respeito à imutabilidade da decisão judicial dentro do processo em que foi proferida. Ou seja, mesmo que a decisão não afete o mérito da causa, uma vez transitada em julgado, não poderá ser modificada no mesmo processo. Esse tipo de coisa julgada opera efeitos endoprocessuais[1], vinculando as partes e o juízo apenas naquele feito específico. Já a coisa julgada material ocorre quando a decisão judicial resolve definitivamente o mérito da causa e adquire eficácia fora do processo em que foi proferida. Nesse caso, a decisão faz lei entre as partes, impedindo a rediscussão da matéria decidida em novo processo, nos termos do artigo 502[2] do Código de Processo Civil. Seu efeito, portanto, é extraprocessual e vinculante, servindo como barreira à perpetuação de litígios e promovendo a estabilidade das relações jurídicas. A estabilidade proporcionada pela coisa julgada é essencial para assegurar a confiança dos cidadãos no sistema judicial. Como enfatiza a jurisprudência: AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. RECÁLCULO DOS VENCIMENTOS DOS AUTORES MEDIANTE A CONVERSÃO EM URV NOS TERMOS DA LEI Nº 8.880/1994. COISA JULGADA. Decisão que rejeitou a impugnação ao cumprimento de sentença, em prestígio à coisa julgada material. Embora a decisão do Pretório Excelso contenha reconhecimento de inconstitucionalidade de interpretação adotada anteriormente ao trânsito em julgado, não pode prevalecer sobre a coisa julgada, que está sendo prestigiada pelo magistrado atuante na origem. Se o inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição Federal estabelece que nem mesmo a lei pode "prejudicar" a coisa julgada, não poderá um julgamento do STF fazê-lo, mesmo que ornado com o efeito da repercussão geral. Os argumentos apresentados pela agravante somente em sede de liquidação de sentença se mostram intempestivos, manejados tardiamente, após estar superada a fase de conhecimento, momento apropriado para tal discussão. Muito embora a decisão combatida se choque com posicionamento da Corte Suprema, ela não se mostra defeituosa sob o aspecto de técnica processual, já que prestigia a coisa julgada, devendo ser dada continuidade ao cumprimento do v. acórdão exequendo. Decisão mantida. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJSP. Acórdão. Processo nº 2110920-70.2024.8.26.0000; Relator (a): Souza Nery; Data do julgamento: 25/06/2024.) Essa estabilidade, todavia, não pode ser absoluta a ponto de perpetuar decisões flagrantemente inconstitucionais ou injustas. Daí a importância da ação rescisória como mecanismo de equilíbrio, permitindo a superação excepcional da coisa julgada nos casos expressamente previstos em lei. 3. Ação Rescisória: Conceito, Fundamentos, Prazos e Requisitos A ação rescisória é um instrumento de impugnação autônomo, previsto no Código de Processo Civil, que tem por finalidade desconstituir uma decisão judicial de mérito já transitada em julgado, quando presentes vícios graves expressamente previstos em lei. Trata-se de uma via excepcional, que tensiona os valores da coisa julgada material e da segurança jurídica com a necessidade de correção de decisões manifestamente ilegais ou inconstitucionais. a) Fundamento Legal A ação rescisória está disciplinada nos artigos 966 a 975 do Código de Processo Civil. O artigo 966 elenca taxativamente as hipóteses que autorizam sua propositura, sendo as principais: · I - se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; · II - for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente; · III - resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; · IV - ofender a coisa julgada; · V - violar manifestamente norma jurídica; · VI - for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória; · VII - obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável; · VIII - for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos. b) Prazos Nos termos do artigo 975 do Código de Processo Civil, a ação rescisória deve ser proposta no prazo de dois anos, contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo, salvo em hipóteses específicas como: · Se fundada em prova nova, o prazo será contado da descoberta da prova, desde que dentro do limite de cinco anos, contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo. · Em caso de decisão fundada em interpretação declarada inconstitucional ou incompatível com a constituição da república em sede de repercussão geral ou controle concentrado, o prazo será contado da data do trânsito em julgado da decisão do STF, conforme jurisprudência consolidada. c) Requisitos Para o regular ajuizamento da ação rescisória, exige-se: · Trânsito em julgado da decisão rescindenda; · Legitimidade ativa, nos termos do artigo 967 do Código de Processo Civil (parte vencida, terceiro juridicamente interessado, Ministério Público, quando for parte ou atuar como fiscal da ordem jurídica); · Depósito de 5% do valor da causa, salvo concessão de gratuidade (artigo 968, inciso II); · Observância do prazo decadencial de dois anos; · Alegação de um dos fundamentos legais taxativamente previstos no artigo 966; · Ação dirigida ao tribunal competente – que, via de regra, é o tribunal que proferiu a decisão rescindenda. d) Natureza Excepcional A ação rescisória possui natureza estritamente excepcional, justamente por incidir sobre decisões amparadas pela coisa julgada. Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que: AÇÃO RESCISÓRIA – RESCISÃO DE SENTENÇA – ERRO DE FATO E EXISTÊNCIA DE PROVA NOVA (ART. 966, VII e VIII, DO CPC) – PRETENSÃO DE DISCUTIR ILEGITIMIDADE ATIVA DA PARTE ADVERSA NA FASE DE CONHECIMENTO, EM QUE RECONHECIDA A REVELIA DO ORA AUTOR - PEDIDO QUE NÃO SE ENQUADRA NAS HIPÓTESES TAXATIVAS DO ART. 966 DO CPC - CASO DE EVIDENTE TENTATIVA DE REFORMA DA DECISÃO POR VIA INADEQUADA - A DEMANDA RESCISÓRIA É INSTRUMENTO PROCESSUAL EXCEPCIONAL, NÃO PODENDO SER USADA COMO SUBSTITUTO DE RECURSO – AÇÃO RESCISÓRIA EXTINTA (ART. 330, III c.c. ART. 485, I e VI, DO CPC) (TJSP. Acórdão. Processo nº 2136254-09.2024.8.26.0000; Relator (a): Luiz Eurico; Data do julgamento: 24/06/2024.) 4. A Inconstitucionalidade em Decisões Transitadas em Julgado: Entre a Segurança Jurídica e a Supremacia da Constituição da República A coexistência de decisões judiciais transitadas em julgado com vícios de inconstitucionalidade coloca em tensão dois valores estruturantes do Estado Democrático de Direito: a segurança jurídica e a supremacia da constituição da república. A questão central é saber até que ponto se pode preservar a coisa julgada diante de uma decisão que afronta preceito constitucional reconhecido, sobretudo à luz de posterior entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal. A segurança jurídica, consagrada implicitamente no artigo 5º, inciso XXXVI, da constituição da república, exige estabilidade e previsibilidade das decisões judiciais. A coisa julgada é um de seus instrumentos mais relevantes, pois impede a eternização dos conflitos e garante a autoridade das decisões judiciais, como reconhecido em jurisprudência reiterada: Entretanto, decisões judiciais que transitam em julgado com fundamento em normas ou interpretações posteriormente declaradas incompatíveis com a constituição da república colocam em xeque o princípio da supremacia constitucional, que exige que todas as normas e atos do Estado se conformem aos preceitos constitucionais. A doutrina majoritária reconhece que, embora a coisa julgada deva ser respeitada, não pode servir de escudo para a perpetuação de inconstitucionalidades evidentes, sobretudo em casos em que há violação de direitos fundamentais ou princípios estruturantes da ordem constitucional. Esse conflito foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 885[3] de repercussão geral, no qual se firmou a tese de que: A tese reafirma que a coisa julgada não é absoluta e pode ser superada, em caráter excepcional, quando contrária à constituição da república. A ação rescisória, nesses casos, funciona como instrumento de recomposição da ordem jurídica, viabilizando a retirada do ordenamento de decisões que, embora formalmente estáveis, estejam materialmente inconstitucionais. Portanto, o problema da inconstitucionalidade de decisões já transitadas em julgado exige uma ponderação qualificada entre a necessidade de preservar a segurança jurídica e a imperatividade da constituição da república. A solução, conferida pelo legislador e pela jurisprudência constitucional, é a manutenção da coisa julgada como regra, admitindo-se sua desconstituição apenas em hipóteses excepcionais e devidamente justificadas, como previsto nos artigos 966, inciso V, e §5º do Código de Processo Civil. 5. Ação Rescisória como Instrumento de Desconstituição de Decisões Inconstitucionais A ação rescisória, por sua natureza excepcional, permite a desconstituição de decisões judiciais transitadas em julgado que contenham vícios gravíssimos. Uma das hipóteses mais relevantes, especialmente à luz do controle de constitucionalidade, é a prevista no artigo 966, inciso V, do Código de Processo Civil, que autoriza a rescisão da decisão quando esta "violar manifestamente norma jurídica". A interpretação dessa expressão pela doutrina e jurisprudência é ampla, incluindo normas infraconstitucionais e preceitos constitucionais, o que permite a utilização da ação rescisória para desconstituir decisões com fundamento contrário à constituição da república. Essa possibilidade é reforçada pelo parágrafo 5º do mesmo dispositivo, que dispõe: § 5º Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caput deste artigo, contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento. Fundamentação Legal · Artigo 966, inciso V, do CPC: "Cabe ação rescisória quando: V – violar manifestamente norma jurídica." · Artigo 966, §5º, do CPC: "Aplica-se o disposto no inciso V também quando a decisão de mérito tiver fundamento em texto de lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou em interpretação considerada incompatível com a constituição da república em controle concentrado ou em julgamento de repercussão geral." Essa previsão legal consagra, no plano infraconstitucional, a prevalência da supremacia constitucional sobre a estabilidade formal da coisa julgada, conferindo à ação rescisória o papel de instrumento de correção constitucional de decisões definitivas, desde que respeitados os requisitos processuais e o prazo decadencial de dois anos (artigo 975 do CPC). Jurisprudência do STF A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece a possibilidade de rescisão de decisões transitadas em julgado por inconstitucionalidade, inclusive nos casos de interpretação superada em sede de repercussão geral ou controle concentrado. Destacam-se: · RE 730.462/MT (Tema 733) – Relator Ministro Gilmar Mendes: Tese: A decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do art. 485 do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495). RE 955.227/BA (Tema 885) – Relator Ministro Roberto Barroso: Tese: 1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo. A partir da conjugação entre a norma processual e a orientação do Supremo Tribunal Federal, é plenamente viável o ajuizamento de ação rescisória com base no artigo 966, inciso V, do CPC, quando demonstrada a incompatibilidade entre a decisão rescindenda e a constituição da república, especialmente quando tal inconstitucionalidade foi reconhecida pelo STF em sede de controle concentrado ou repercussão geral. Trata-se de uma válvula de escape cuidadosamente delimitada pelo ordenamento jurídico para conciliar a autoridade da coisa julgada com o postulado da supremacia constitucional. 6. Conclusão: Equilíbrio entre Segurança Jurídica e Justiça Constitucional: o Papel da Ação Rescisória O processo civil contemporâneo está cada vez mais voltado à realização de valores constitucionais, o que impõe um necessário diálogo entre as categorias clássicas do direito processual — como a coisa julgada — e os princípios fundantes do Estado Democrático de Direito, entre os quais sobressaem a segurança jurídica e a justiça constitucional. Esses dois valores, embora muitas vezes vistos como conflitantes, são complementares e igualmente indispensáveis à legitimidade da jurisdição. A segurança jurídica exige estabilidade das decisões judiciais, previsibilidade e confiança no sistema processual. Ela está intimamente ligada à autoridade da coisa julgada material, que impede a reabertura indefinida de litígios e promove a paz social. No entanto, essa estabilidade não pode se transformar em instrumento de perpetuação da injustiça, sobretudo quando fundada em decisões manifestamente inconstitucionais, incompatíveis com os direitos fundamentais ou com a interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal à constituição da república. É nesse contexto que a ação rescisória assume papel crucial como instrumento de equilíbrio e recomposição da ordem jurídica. Longe de representar uma banalização da coisa julgada, ela é um mecanismo processual excepcional, delimitado por requisitos rigorosos e prazos preclusivos, destinado a corrigir vícios graves que comprometam a legitimidade das decisões judiciais, inclusive os de natureza constitucional. Como bem reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 885 da repercussão geral, a rescisória pode ser utilizada para desconstituir decisões contrárias a entendimento constitucional firmado em sede de controle concentrado ou repercussão geral, respeitado o devido processo legal. Essa possibilidade não enfraquece a coisa julgada, mas reafirma sua função dentro de um sistema jurídico comprometido com a supremacia da constituição da república. Trata-se, portanto, de uma ponderação entre valores estruturantes, que deve ser feita com parcimônia, tecnicidade e respeito ao devido processo legal. A ação rescisória, assim, não é uma afronta à segurança jurídica, mas sim um recurso necessário à concretização da justiça constitucional, quando exercida dentro dos limites legais e constitucionais estabelecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro. [1] Que ocorre ou está contido no processo, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2025, disponível em: https://dicionario.priberam.org/endoprocessual, acessado em: 2 de julho de 2025. [2] Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso. [3] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia Repercussao/verAndamentoProces so.asp?incidente=4945134&numero Processo=955227&classeProcesso=RE&numeroTema=885, acessado em: 2 de julho de 2025. |