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Sentença transita em julgado e não é executada

O que a corte sulista inova na jurisprudência é a desconstituição de julgados transitados já em fase de execução.

A falta de modulação da decisão do Supremo que declarou devida a Cofins por escritórios de advocacia e outras profissões liberais começa a causar os primeiros nós na Justiça. Decisões já transitadas em julgado favoráveis aos contribuintes estão ameaçadas de revisão sem que o fisco tenha sequer o trabalho de entrar com uma Ação Rescisória. No Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que abrange todo o Sul do país, os desembargadores chegaram a negar o levantamento de depósitos judiciais por quem já derrotou definitivamente o fisco na Justiça. Para a corte, mesmo que as vitórias tenham transitado em julgado, autorizar o levantamento dos depósitos seria executar um título judicial baseado em interpretação que não coincide com a do Supremo.

A revisão da coisa julgada nos casos de execuções contra a Fazenda não é novidade. Desde 2001, o Código de Processo Civil considera inexigível qualquer título judicial baseado em interpretação de lei incompatível com a Constituição Federal. Ou seja, se o Supremo Tribunal Federal muda seu entendimento em relação a determinado tributo, o contribuinte não tem mais direito de exigir restituição em dinheiro do que pagou. Mas isso era pacífico apenas em relação à emissão de precatórios. O que a corte sulista inova na jurisprudência é a desconstituição de julgados transitados já em fase de execução.

Usando a interpretação repisada do Superior Tribunal de Justiça de que sociedades de profissionais estavam isentas do recolhimento da Cofins, a clínica paranaense Centro de Patologia de Curitiba S/C Ltda ajuizou Mandado de Segurança para garantir seu direito de não pagar. Durante o processo, depositou mensalmente os valores discutidos em uma conta judicial. No STJ, ganhou. Em abril do ano passado, a última decisão sobre o caso, do Supremo Tribunal Federal, contrária à União, transitou em julgado. A clínica requereu, então, o levantamento de R$ 249 mil em depósitos feitos à Justiça de primeiro grau, mas o pedido foi negado. A justificativa foi outra decisão do STF, que em 2008 considerou as sociedades civis sujeitos passivos da contribuição, derrubando a Súmula 276 do STJ, que as isentava.

Ao levar recurso ao TRF-4, a clínica perdeu novamente. A 1ª Turma rejeitou o Agravo de Instrumento que alegava desobediência a decisão transitada em julgado. Para os desembargadores, todo título executivo firmado em entendimento contrário ao do STF— o que inclui sentenças judiciais — não tem validade. O entendimento se baseia no parágrafo único do artigo 741 do Código de Processo Civil. “Considera-se (…) inexigível o título judicial (…) fundado em aplicação ou interpretação da lei (…) tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição”, prevê o dispositivo. Na opinião dos desembargadores, o mero levantamento dos depósitos é uma forma de execução contra a Fazenda Nacional. Por isso, eles ordenaram que o valor fosse convertido em renda da União, no melhor estilo “ganhou, mas não levou”.

“Ainda que a ação mandamental não ostente cunho patrimonial, não se pode negar que o título judicial (…), tal como ocorre com as decisões de eficácia condenatória, também necessita de providências posteriores ao trânsito em julgado para fins de concretização do direito assegurado, de modo que se mostra adequado o prévio exame da exigibilidade do título antes de determinar-se o destino dos depósitos”, disse em seu voto o desembargador Joel Ilan Paciornik, relator do caso. A mesma turma já havia decidido no mesmo sentido em 2008, ao julgar o cumprimento de Mandado de Segurança sobre decadência de contribuição previdenciária, na Ação Cível 2006.70.00.006033-5.

Trânsito na contra-mão

Para o tributarista Eduardo Kiralyhegy, do escritório Negreiro, Medeiros & Kiralyhegy Advogados, o dispositivo se refere apenas a precatórios, títulos de execução contra o fisco, e não a cumprimentos de decisões em Mandado de Segurança, sem cunho patrimonial. “Foi uma simples petição dentro do processo, e não uma execução contra a Fazenda ou uma liquidação de sentença”, diz. Segundo ele, não existe mais obrigação tributária quando a sentença transita em julgado a favor do contribuinte, como prevê o artigo 156, inciso X, do Código Tributário Nacional. “Além disso, os julgados do Supremo que reconheceram a incidência da Cofins sobre as sociedades civis ainda não transitaram em julgado.”

A questão do trânsito das decisões superiores é importante para entender o imbróglio. Ao dizer que o crédito-prêmio do IPI a ser usado pelos exportadores acabou em 1990, o STF, no ano passado, parou diante de uma Questão de Ordem levantada pelo ministro Ricardo Lewandowski. O relator do processo argumentou que havia precedentes na corte favoráveis aos contribuintes que, no entanto, ainda não haviam passado em julgado, mas que serviriam como guia. Ficou vencido. A maioria dos ministros entendeu que os precedentes favoráveis aos contribuintes, no caso, teriam que já ter transitado. Agora, no entanto, o TRF-4 considerou definitiva a decisão no Recurso Extraordinário 377.457, julgado pelo Supremo.

“Fica a dúvida se o contribuinte, agora, terá de recolher o tributo ou não, já que o Mandado de Segurança desobrigava os futuros recolhimentos”, diz Kiralyhegy. “O fisco pode simplesmente, com base na decisão, descumprir a sentença transitada em julgado e passar a cobrá-lo, argumentando que o julgamento é inconstitucional.” Para o advogado, reversões pró-fisco na Justiça, como as que ocorreram em relação às cobranças do crédito-prêmio do IPI e do Incra, podem seguir o mesmo caminho. “O entendimento diz à Fazenda que ela pode virar o jogo mesmo se o prazo para entrar com rescisórias já houver esgotado”, entende.

Via de mão dupla 

Defendida há tempos pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a tese do “mecanismo processual com eficácia rescisória” não se aplica só ao fisco, mas pode ser usada também por contribuintes. “Seria uma distinção não reconhecer o direito a ambas as partes”, diz Fabrício da Soller, procurador-geral adjunto de consultoria e contencioso tributário do órgão. Segundo ele, apesar de o CPC se referir expressamente a desconstituição de título executivo, cabe na interpretação também o cumprimento de ordens judiciais em Mandados de Segurança. Soller afirma ainda que não são apenas decisões em Ações Diretas de Inconsitucionalidade que justificam o uso do dispositivo, mas também Ações Declaratórias de Constitucionalidade e ações de controle difuso, como Recursos Extraordinários, que analisam apenas casos concretos.

“Toda interpretação literal da lei é pobre. Deve-se levar em conta a finalidade do dispositivo”, explica. Para ele, em termos práticos, não existe diferença entre execução de sentença e cumprimento de Mandado de Segurança. “No fim, o valor do depósito ou vai ser convertido em renda da União, ou levantado pelo contribuinte.”

Tomando o caso da clínica como exemplo, o procurador afirma que, caso o TRF não levasse o dispositivo do CPC em consideração, uma Ação Rescisória daria ao processo o mesmo destino com facilidade. “Seria apenas mais trabalho e dinheiro público gasto em vão.”

O assunto já havia levado, na última quarta-feira (30/6), 80 pessoas a uma audiência pública promovida pela PGFN em Brasília. No evento, que foi transmitido via internet para outras duas mil pessoas, procuradores, fiscais e tributaristas discutiram a cobrança de tributos de contribuintes beneficiados por decisões definitivas, mas contrárias ao entendimento do Supremo. Os debates, que contaram com a participação, entre outros ilustres, do professor Heleno Taveira Torres, da Universidade de São Paulo, e do ministro Teori Zavascki, do STJ, servirão de base para que a PGFN elabore um parecer a vincular toda a administração tributária, o que inclui a Receita Federal. A ideia é que, a cada decisão do Supremo que altere entendimento favorável às empresas, a Procuradoria publique um ato administrativo avisando os contribuintes com sentenças transitadas que eles perderam o direito, e que o fisco voltará a cobrar, devido à “cessação da eficácia da sentença transitada em julgado”, de acordo com Fabrício da Soller. Segundo ele, esse comunicado só seria feito depois que o acórdão fosse publicado, e não haveria qualquer cobrança retroativa.

Atalho ameaçado

O dispositivo que serviu de fundamento às decisões do TRF-4 também corre o risco de cair. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Medida Provisória 2.180-35, que introduziu o parágrafo único no artigo 741 do CPC, aguarda desde 2001 para ser julgada no Supremo. A ADI 2.418, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, já tem parecer favorável da Procuradoria-Geral da República quanto à mudança no CPC, e aguarda o voto do relator, ministro Gilmar Mendes. “Dependendo de sua decisão, o Supremo pode chancelar a tese da Fazenda em relação ao tema”, avisa Kiralyhegy.


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