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Imóvel como garantia de empréstimos dá liberdade e exige responsabilidade do consumidor

Conhecido como novo marco legal das garantias de financiamentos, o PL 4188/21, de autoria do Poder Executivo, avançou no início do mês na Câmara dos Deputados, com 260 votos favoráveis e 111 contrários, com a expectativa de ampliar o acesso ao crédito pela população

Fonte: O Autor

Conhecido como novo marco legal das garantias de financiamentos, o PL 4188/21, de autoria do Poder Executivo, avançou no início do mês na Câmara dos Deputados, com 260 votos favoráveis e 111 contrários, com a expectativa de ampliar o acesso ao crédito pela população. A proposta, que ainda deverá ser analisada pelo Senado Federal, permite que o consumidor ceda o imóvel como garantia na contratação de um empréstimo.

O imóvel de família é, via de regra, impenhorável, conforme legislação atual. A exceção é que ele seja utilizado como garantia do financiamento do próprio imóvel e leiloado em caso de inadimplência do próprio financiamento imobiliário. Essa eventual mudança na legislação tem gerado diversos debates na sociedade sobre o real benefício dessa medida para a população.

De início, é importante ressaltar que a contratação de um empréstimo requer uma profunda análise da situação financeira do tomador e um planejamento adequado para o adimplemento. Junto ao empréstimo estarão os juros, que é a forma de remunerar a instituição financeira pelo serviço. Alguns empréstimos, como o consignado, possuem juros notadamente mais baixos, em virtude da chance reduzida de inadimplemento. O ponto favorável para permitir que o imóvel de família seja indicado como garantia em empréstimos é justamente esse: reduzir o risco de inadimplemento e, assim, garantir juros mais baixos.

O tema já chegou ao STJ, especialmente para apurar se a referida proteção alcança, ou não, o imóvel indicado como garantia de contrato de mútuo com cláusula de alienação fiduciária, mesmo na hipótese em que o empréstimo não tenha sido utilizado para aquisição, reforma ou construção do bem. A conclusão foi de que (i) a proteção conferida ao bem de família pela Lei nº 8.009/90 não importa em sua inalienabilidade, revelando-se possível a disposição do imóvel pelo proprietário, inclusive no âmbito de alienação fiduciária; e (ii) a utilização abusiva de tal direito, com evidente violação ao princípio da boa-fé objetiva, não deve ser tolerada, afastando-se o benefício conferido ao titular que exerce o direito em desconformidade com o ordenamento jurídico (REsp nº 1.595.832 – SC), conforme julgamento abaixo:

EMENTA: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO E NULIDADE DA CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE. IMÓVEL INDICADO COMO GARANTIA DE CONTRATO DE MÚTUO COM CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. PROTEÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA. DESCABIMENTO. NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL REQUERIDA POR PESSOA JURÍDICA DIVERSA DO CREDOR FIDUCIÁRIO. IRREGULARIDADE INSANÁVEL. NULIDADE RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE CONSTITUIÇÃO EM MORA DO DEVEDOR. 1. A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/90 não pode ser afastada por renúncia do devedor ao privilégio, pois é princípio de ordem pública, prevalente sobre a vontade manifestada (AgRg nos EREsp 888.654/ES, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 14.03.2011, DJe 18.03.2011). 2. Nada obstante, à luz da jurisprudência dominante das Turmas de Direito Privado: (a) a proteção conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/90 não importa em sua inalienabilidade, revelando-se possível a disposição do imóvel pelo proprietário, inclusive no âmbito de alienação fiduciária; e (b) a utilização abusiva de tal direito, com evidente violação do princípio da boa-fé objetiva, não deve ser tolerada, afastando-se o benefício conferido ao titular que exerce o direito em desconformidade com o ordenamento jurídico. 3. No caso dos autos, não há como afastar a validade do acordo de vontades firmado entre as partes, inexistindo lastro para excluir os efeitos do pacta sunt servanda sobre o contrato acessório de alienação fiduciária em garantia, afigurando-se impositiva, portanto, a manutenção do acórdão recorrido no ponto, ainda que por fundamento diverso. 4. De outro lado, é certo que, para que ocorra a consolidação da propriedade fiduciária em nome do credor, o devedor fiduciante deverá ser regularmente notificado, ato que, na alienação fiduciária de imóvel, acarreta diversos possíveis efeitos jurídicos: (a) a purgação da mora, com a retomada do contrato (§ 5º do artigo 26); (b) caso não haja pagamento, o oficial do cartório de registro certificará o evento ao credor para que adote as medidas necessárias à consolidação da propriedade em seu favor; (c) a reintegração de posse e posterior leilão do imóvel; e (d) enquanto não for extinta a propriedade fiduciária resolúvel, persistirá a posse direta do devedor fiduciante. 5. A notificação em questão, para além das consequências naturais da constituição do devedor fiduciante em mora, permite, em não havendo a purgação e independentemente de processo judicial (opera-se formalmente pela via registrária cartorial), o surgimento do direito de averbar na matrícula do imóvel a consolidação da propriedade em nome do credor notificante, isto é, do fiduciário. 6. Sob tal ótica, destaca-se a exegese perfilhada em julgado da Quarta Turma no sentido de que "a repercussão da notificação é tamanha que qualquer vício em seu conteúdo é hábil a tornar nulos seus efeitos, principalmente quando se trata de erro crasso, como há na troca da pessoa notificante" (REsp 1.172.025/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 07.10.2014, DJe 29.10.2014). 7. Na espécie, revela-se evidente a existência de defeito na indicação do credor fiduciário (notificante), pois, à época do encaminhamento da notificação extrajudicial (outubro de 2013), a Caixa Econômica Federal não titularizava qualquer crédito em face da devedora fiduciante (notificada), cenário que somente veio a ser alterado em janeiro de 2014, data em que ocorrida a cessão do crédito pertencente a Brazilian Mortgages Companhia Hipotecária (credora originária). 8. Sobre a data da cessão, importante assinalar que, nos termos das decisões proferidas nos autos (indeferitória de tutela antecipada e sentença), a Caixa Econômica Federal não logrou demonstrar que o negócio jurídico teria sido celebrado em momento anterior a janeiro de 2014. 9. Assim, acabou por ser ineficaz a notificação extrajudicial, que, ao cientificar a devedora fiduciante sobre débito pelo qual estaria em mora, apontou pessoa jurídica diversa como credor fiduciário, o que se deu sem respaldo em negócio jurídico contemporâneo, retratando, assim, relação jurídica que não correspondia com a realidade dos fatos, o que invalida a consolidação da propriedade do imóvel. 10. Recurso especial parcialmente provido.

Não há dúvidas de que essa medida, trazida por força de lei, traria maior liberdade para o consumidor, permitindo novas oportunidades de crédito com juros mais baixos. Por outro lado, pode ocasionar a perda do único bem de famílias em situação de vulnerabilidade. O receio de uma crise semelhante ao que ocorreu em 2008 nos EUA, quando houve a bolha imobiliária, parece inevitável a princípio, pois, com o aumento na facilidade de obtenção de crédito, a possibilidade de inadimplência também aumentará, fazendo com que os bens de família estejam disponíveis no mercado. Com o aumento da oferta, a dívida se torna impagável. O debate, então, gira justamente até onde deve ir o controle do estado na concessão do empréstimo.

A experiência dos EUA, de fato, não é boa e serve de alerta, mas a realidade de cada país é bem diferente e os tempos também mudaram. O poder de liberdade dado ao consumidor deve ser sempre valorizado e estimulado, porém muitas vezes é preciso compreender que essa liberdade exige conhecimento e responsabilidade. Possibilitar ao consumidor o acesso a crédito com taxas menores de juros é, inegavelmente, uma medida a ser aplaudida, mas é preciso que o consumidor entenda o papel que está assumindo na tomada de sua decisão. O Estado deixaria na mão do consumidor mais poder para decidir sobre sua vida financeira. É preciso compreender essa responsabilidade.

Silvio Soares, especialista em Direito do Consumidor do Urbano Vitalino Advogados


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